domingo, 5 de outubro de 2008

Indiferentemente, vivo!


Brandos gritos ressoam nas colinas além, onde o sol espreita como que a medo. São gritos suaves, macios, mas que insistem em não se dissipar perante a leve brisa que nasce.
São oito da manhã e eu permaneço no meu leito, procurando cair num sono profundo e aterrar nas asas dos sonhos mais singelos. A noite foi mal dormida, as dores de cabeça começam a despoletar e os gritos continuam a ecoar. Por mais que tente, não consigo adormecer. Mais vale pôr-me a pé e adiantar trabalho, pois as ruas estão sujas e precisam de ser lavadas, antes que o sol lhes sugue o sangue!
Ao sair de casa olho de soslaio para as casas nas colinas distantes, mas a minha vista é fraca e o sol cega o que ainda consegue ver. Não vale a pena tentar avistar o que não quer ser visto! Prossigo com as minhas tarefas e pondo à mão o balde e a vassoura, esfrego as manchas intermináveis no alcatrão recente. São máculas difíceis de limpar, mas não há nada que vença o esforço!
A sineta toca de rompante e anuncia o almoço. São horas de largar as ruas e regressar ao sossego e segurança das quatro paredes. Também os soldados sabem disso e é vê-los apressarem o passo para o casebre! Não fossemos saber qual é a função deles e todos diríamos que preferem lavar e dobrar a roupa dos outros a proteger os interesses da sua pátria. Por momentos, as ruas ficam limpas, tranquilas. Os gritos cessam e os pássaros voltam às copas das árvores, agradecendo o silêncio que lhes permite confraternizar. E eu apresso-me também para os meus humildes anexos; o sol brilha alto e o calor começa a despoletar a podridão.
Com este lúgubre e apetecido silêncio, preparo o pão e a sopa rapidamente. Não que queira voltar ao trabalho, mas porque a dor de cabeça se torna cada vez mais forte, mais intensa e faz crescer o desejo sufocante de querer ainda gozar de um pouco de sesta. Ah, como é bom recostar a cabeça e fechar os olhos para o mundo. Agora que nada oiço, sinto uma leveza na alma.
O sol começa a pôr-se e toca a trompeta. São sete horas da tarde. Está na hora de regressar de vez a casa, preparar o jantar e descansar de mais um dia. Já na mesa, batidas ecoam lá fora. É tempo de me deitar. As tropas põem-se a caminho numa marcha lenta, pesada, anunciando aquilo que já ninguém quer ouvir. Instantes depois, reiniciam-se os gritos, hoje mais dolorosos, aflitivos, penosos. Penso para mim: “Deus seja louvado, que me fez nascer do lado certo”. E reflicto mais um pouco, ansiando por qualquer boa-nova que me traga alguma esperança, algum descanso.
“Bendito seja Deus, que me fez fraco de força”.
Hoje, à luz do que vivi, na distância profunda dos gritos com que me tornei homem, já não sei porque permaneci naquela terra amaldiçoada. Foi tão grande e atroz a minha ignorância, a minha impotência. Maior ainda a minha indiferença!
Hoje, longe dos pesados anos de tormentas, ainda sinto a cabeça a latejar de tanta dor, de tanto sofrimento, de tanta podridão. Das colinas distantes ainda me chegam os gritos. São marcas de um tempo que o próprio Tempo insiste em não apagar.
Hoje, já finitas as batidas dos tambores, julgo ver rostos sem rosto, corpos profanados para a honra da pátria. São seres lavados num sangue ainda quente, sangue que eu próprio lavei.
Já não durmo. Já não fecho os olhos para o mundo! Permaneço atento, aguardando pacientemente o último dia em que ainda vislumbrarei aquelas ruas; devorando-me lentamente por dentro. E penso: “É com certeza a consciência, ávida de justiça”! Mas sempre temendo que afinal seja Deus, injuriado pelas minhas graças de outrora, arrastando-me por estradas de espinhos, para o Juízo Final...

1 comentário:

Anónimo disse...

patricinha, dizes tanto com as tuas palavrinhas. despertas tanta coisa. é sempre uma escrita q me transmite acima de tudo esperança, que considero ser das melhores coisas q podemos ter, pela sua eternidade. obrigada por isso ;) beijao enorme*