quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Intercidades


No outro dia, durante a viagem no intercidades, dei comigo imersa em pensamentos que não consigo explicar muito bem. As viagens de comboio conduzem-me muitas vezes para, além do destino, espaços tão imaginários que até custa dislumbrá-los na realidade. E, no entanto, eles passam diante dos meus olhos.


No silêncio humano forçado pelo ruído do ferro, encontro em mim sensações que poucas vezes experimento em "terra firme". A música do Mp3 une-se à paisagem que corre para lá da janela da minha carruagem. Na sua singela união eu abstraio-me de tudo o resto. De repente, é como se já não estivesse dentro do comboio, mas nas planícies infinitas de Santarém. Apenas posso ver o riacho sob a ponte, mas é como se o ouvisse. O mundo pára e, no entanto, o comboio não deixa de avançar em direcção ao norte.


A paisagem muda; as árvores, a terra, os montes, as casas, o céu adquirem novas formas, novas dimensões. Eu permaneço com os headphones no lugarzinho junto à janela, junto à minha porta para um novo mundo, tão diferente daquele donde saí. Sem que sinta falta do que deixei para trás, o futuro avizinha-se mais verdejante, sorridente. Sinto alegria, prazer. Sinto que sou outra pessoa. Sinto que Deus me dá tudo aquilo que sempre quis. Estou aqui e estou além. Estou e não estou porque entretanto já passei. Estou na realidade e estou imersa num sonho.


O comboio continua a viagem. Quando pára saiem e entram mais pessoas. Malas deslizam pelo corredor, olhares procuram o número correcto. E eu observo-os na minha ingenuidade, tentando adivinhar para onde vão, de onde vêm. Mas a face deles é séria, nada consigo desvendar.


Lá fora a paisagem começa a correr devagarinho, sempre aumentando a velocidade. Às tantas parece que nem a consigo acompanhar, ela foge-me!


Duas horas e meia de viagem. Cheguei ao meu destino.


O tempo passou de rompante. Já aqui estou, na estação de Aveiro. Estou mas sem certezas de estar na plenitude. Sem saber muito bem porquê, dou comigo com vontade de voltar atrás no tempo, no espaço. Partes de mim ficaram pelo caminho. Partes que eu quero recuperar, que eu tenho de guardar.



Foto de Nate Biel

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Liberdade

Fotografia de Bohman
'
"O destino dos homens é a Liberdade"
[Vinícius de Moraes]

domingo, 19 de outubro de 2008

Lost



«Just because I'm losing,

doesn't mean I'm lost»

Procurando o sentido da vida, jogando ao faz-de-conta ... Penetrando no mundo, perdendo-me nele.

Fotografia de Ana_Cotta

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Humanity

By: sfthqphotos


Há uns tempos atrás ouvi ecoar muitas vezes esta frase! Pessoas no mundo inteiro estavam de olhos postos nos Jogos Olimpicos de Pequim, na revolta dos tibetanos, na união global que parecia trazer um novo rumo ao Tibete. Tentativas de sabotagem da Tocha Olímpica, discursos "polémicos" do Dalai Lama, protestos em cada esquina das ruas chinesas ... Mas nessas mesmas ruas também estavam os vigilantes do regime chinês, as cameras que memorizavam os rostos de quem preconizava a mudança.

E hoje, alguns meses depois e após o sucesso dos Jogos Olímpicos, parece que o Governo da China levou a melhor e a liberdade tão desejada para o Tibete caiu em esquecimento para a maioria. Enquanto há uns meses um mundo inteiro se erguia por uma causa social, hoje o mundo volta a unir-se, mas para arranjar soluções para a crise económica mundial. Enquanto há uns tempos apenas as pessoas ditas comuns pareciam interessar-se por questões humanas, hoje são os políticos quem mais rezam para que a tortura económica ache um fim.

Espero sinceramente que encontrem a solução para esta tortura. Mas não nos podem pedir que esqueçamos outras torturas, estas mais hediondas. São todas aquelas cometidas contra a dignidade humana, a sua liberdade e integridade. Por isso, voltemos a atrever-nos! Voltemos a lançar um olhar sobre as questões ligadas aos direitos humanos. A crise económica é bastante séria, mas não apaga tudo o resto que continua a acontecer em frente da nossa cara.

Darfur, Tibete, Índia, Países Islâmicos, povos subjugados ao poder ...todos eles precisam da nossa força e união. Todos eles precisam de alguém que se lembre da sua existência e o proclame aos quatro ventos. Todos eles precisam da nossa atenção, da nossa coragem, da nossa intervenção!

Algo tem que ser feito ... comecemos imeditamente! Enquanto os políticos e economistas tentam garantir a nossa independencia económica, concentremo-nos nós, não especialistas em questões económicas e sem grande contributo para a resolução do problema, a dar o nosso melhor, a fim de garantir a independência de cada ser humano!

Por isso:

Make some noise for Darfur, Free Tibet, Equality, Freedom, Spirituality, Humanity <3

domingo, 5 de outubro de 2008

Indiferentemente, vivo!


Brandos gritos ressoam nas colinas além, onde o sol espreita como que a medo. São gritos suaves, macios, mas que insistem em não se dissipar perante a leve brisa que nasce.
São oito da manhã e eu permaneço no meu leito, procurando cair num sono profundo e aterrar nas asas dos sonhos mais singelos. A noite foi mal dormida, as dores de cabeça começam a despoletar e os gritos continuam a ecoar. Por mais que tente, não consigo adormecer. Mais vale pôr-me a pé e adiantar trabalho, pois as ruas estão sujas e precisam de ser lavadas, antes que o sol lhes sugue o sangue!
Ao sair de casa olho de soslaio para as casas nas colinas distantes, mas a minha vista é fraca e o sol cega o que ainda consegue ver. Não vale a pena tentar avistar o que não quer ser visto! Prossigo com as minhas tarefas e pondo à mão o balde e a vassoura, esfrego as manchas intermináveis no alcatrão recente. São máculas difíceis de limpar, mas não há nada que vença o esforço!
A sineta toca de rompante e anuncia o almoço. São horas de largar as ruas e regressar ao sossego e segurança das quatro paredes. Também os soldados sabem disso e é vê-los apressarem o passo para o casebre! Não fossemos saber qual é a função deles e todos diríamos que preferem lavar e dobrar a roupa dos outros a proteger os interesses da sua pátria. Por momentos, as ruas ficam limpas, tranquilas. Os gritos cessam e os pássaros voltam às copas das árvores, agradecendo o silêncio que lhes permite confraternizar. E eu apresso-me também para os meus humildes anexos; o sol brilha alto e o calor começa a despoletar a podridão.
Com este lúgubre e apetecido silêncio, preparo o pão e a sopa rapidamente. Não que queira voltar ao trabalho, mas porque a dor de cabeça se torna cada vez mais forte, mais intensa e faz crescer o desejo sufocante de querer ainda gozar de um pouco de sesta. Ah, como é bom recostar a cabeça e fechar os olhos para o mundo. Agora que nada oiço, sinto uma leveza na alma.
O sol começa a pôr-se e toca a trompeta. São sete horas da tarde. Está na hora de regressar de vez a casa, preparar o jantar e descansar de mais um dia. Já na mesa, batidas ecoam lá fora. É tempo de me deitar. As tropas põem-se a caminho numa marcha lenta, pesada, anunciando aquilo que já ninguém quer ouvir. Instantes depois, reiniciam-se os gritos, hoje mais dolorosos, aflitivos, penosos. Penso para mim: “Deus seja louvado, que me fez nascer do lado certo”. E reflicto mais um pouco, ansiando por qualquer boa-nova que me traga alguma esperança, algum descanso.
“Bendito seja Deus, que me fez fraco de força”.
Hoje, à luz do que vivi, na distância profunda dos gritos com que me tornei homem, já não sei porque permaneci naquela terra amaldiçoada. Foi tão grande e atroz a minha ignorância, a minha impotência. Maior ainda a minha indiferença!
Hoje, longe dos pesados anos de tormentas, ainda sinto a cabeça a latejar de tanta dor, de tanto sofrimento, de tanta podridão. Das colinas distantes ainda me chegam os gritos. São marcas de um tempo que o próprio Tempo insiste em não apagar.
Hoje, já finitas as batidas dos tambores, julgo ver rostos sem rosto, corpos profanados para a honra da pátria. São seres lavados num sangue ainda quente, sangue que eu próprio lavei.
Já não durmo. Já não fecho os olhos para o mundo! Permaneço atento, aguardando pacientemente o último dia em que ainda vislumbrarei aquelas ruas; devorando-me lentamente por dentro. E penso: “É com certeza a consciência, ávida de justiça”! Mas sempre temendo que afinal seja Deus, injuriado pelas minhas graças de outrora, arrastando-me por estradas de espinhos, para o Juízo Final...