
No silêncio humano forçado pelo ruído do ferro, encontro em mim sensações que poucas vezes experimento em "terra firme". A música do Mp3 une-se à paisagem que corre para lá da janela da minha carruagem. Na sua singela união eu abstraio-me de tudo o resto. De repente, é como se já não estivesse dentro do comboio, mas nas planícies infinitas de Santarém. Apenas posso ver o riacho sob a ponte, mas é como se o ouvisse. O mundo pára e, no entanto, o comboio não deixa de avançar em direcção ao norte.
A paisagem muda; as árvores, a terra, os montes, as casas, o céu adquirem novas formas, novas dimensões. Eu permaneço com os headphones no lugarzinho junto à janela, junto à minha porta para um novo mundo, tão diferente daquele donde saí. Sem que sinta falta do que deixei para trás, o futuro avizinha-se mais verdejante, sorridente. Sinto alegria, prazer. Sinto que sou outra pessoa. Sinto que Deus me dá tudo aquilo que sempre quis. Estou aqui e estou além. Estou e não estou porque entretanto já passei. Estou na realidade e estou imersa num sonho.
O comboio continua a viagem. Quando pára saiem e entram mais pessoas. Malas deslizam pelo corredor, olhares procuram o número correcto. E eu observo-os na minha ingenuidade, tentando adivinhar para onde vão, de onde vêm. Mas a face deles é séria, nada consigo desvendar.
Lá fora a paisagem começa a correr devagarinho, sempre aumentando a velocidade. Às tantas parece que nem a consigo acompanhar, ela foge-me!
Duas horas e meia de viagem. Cheguei ao meu destino.
O tempo passou de rompante. Já aqui estou, na estação de Aveiro. Estou mas sem certezas de estar na plenitude. Sem saber muito bem porquê, dou comigo com vontade de voltar atrás no tempo, no espaço. Partes de mim ficaram pelo caminho. Partes que eu quero recuperar, que eu tenho de guardar.
Foto de Nate Biel